Dia 5 - (En) Atendimentos prioritários

Meme do dia:

Musica do dia: Ainda em contenção de gigas, por isso temos de ir com calma.

É fim do mês e escolhi este meme exactamente por isso. Estamos naquela altura em que os supermercados estão apinhadinhos de gente, ansiosa por fazer compras. É aquela mesma altura em que as filas triplicam exponencialmente e as pessoas têm uma certa dificuldade em compreender o conceito de espaço pessoal e tendem a achar que o seu espaço pessoal é aquele que está coladinho ao outro. Muitos, se não for  a maior parte, também revelam algumas limitações cognitiva no que toca à gestão do espaço no tapete dos produtos, nas caixas do supermercado, achando que o ideal é ir logo colocando as coisas todas em cima do dito cujo, praticamente, anexadas aos bens da criatura que está à sua frente.   

Deixem-me que vos diga, trata-se uma altura tramada para, qualquer pessoa normal, navegar nesta tipologia de espaços comerciais. Até porque não é só isto.

Vocês já repararam na cena do atendimento prioritário?  Pessoalmente, não sou a favor deste decreto-lei. Ou bem que somos todos iguais, ou bem que não somos e no meu entendimento, um acto de discriminação positiva, não deixa de ser um acto de discriminação. No entanto, não obstante o meu entendimento, a verdade é que o decreto-lei existe, está em vigor e deve ser respeitado... e também é claro, que qualquer cidadão que não faça parte da listinha dos outros cidadãos identificados no dito decreto, pode chatear-se por estar 30 minutos à espera numa fila, largar as coisas e ir embora (coisa que aliás já fiz algumas vezes e não me causa grande mossa, excepto a parte de perder 30 minutos do meu tempo). 

No entanto, devo confessar que este decreto é uma cena que me aborrece, desde logo o modo pindérico como está redigido e começa logo no n.º 1, que diz assim:

"Todas as pessoas, públicas e privadas, singulares e coletivas, no âmbito do atendimento presencial ao público, devem atender com prioridade sobre as demais pessoas:"

Todas as pessoas singulares???

As pessoas singulares fazem atendimento ao público? Já dei voltas à cabeça para tentar perceber em que situações poderão as pessoas singulares fazer atendimento ao público e só me ocorrem os freelancers a recibos verdes, sendo que na panóplia de profissões que estes podem desempenhar não estou bem a ver qual a suposta relação com o público em geral... a não ser que sejam, possivelmente, profissionais do sexo, mas creio que de momento esses ainda não passam recibos.

Depois o decreto continua, identificando o seu grupo-alvo:

"a) Pessoas com deficiência ou incapacidade; b) Pessoas idosas; c) Grávidas; e d) Pessoas acompanhadas de crianças de colo."

Não obstante a hierarquização, um tanto ou quanto subtil, de incapacidades reflectida no texto, a verdade é que o que o texto diz é que uma pessoa acompanhada de criança de colo deve ser tratada da mesma maneira que uma pessoa com deficiência ou incapacidade... Não é que eu discorde, totalmente, da ideia. Só não sei se a pessoa acompanhada da criança de colo percebe bem a coisa. Também não sou assim tão avessa à questão das grávidas serem tratadas da mesma forma que uma pessoa com deficiência ou incapacidade, porque a oxigenação do cérebro afinal tem de ser partilhada, mas das duas uma: Ou a gravidez é uma doença incapacitante e isso deve ter consequências noutras áreas também; ou a gravidez não é uma doença. Nesse sentido, pronto, dava jeito decidirem o que é que é.

Como em qualquer lei (ou decreto, whatever), geral e abstracta, quando a malta pensa que a coisa não pode piorar, aparece a segunda parte. Esta parte 2, não é mais nem menos do que a explicação do que é que se deve entender pelo público-alvo. Por outras palavras, é uma espécie de glossário. Então diz assim:

"a) «Pessoa com deficiência ou incapacidade», aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas suscetíveis de, em conjugação com os fatores do meio, lhe limitar ou dificultar a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas e que possua um grau de incapacidade igual ou superior a 60 % reconhecido em Atestado Multiúsos;"

Atentem bem no detalhe; e que possua um grau de incapacidade igual ou superior a 60 % reconhecido em Atestado Multiúsos. Isto deve ser um dos maiores pesadelos dos caixas no Pingo Doce em horas de ponta. Virar-se para um cliente, que aparente algum grau de deficiência, e pedir-lhe o Atestado Multiúsos que comprove uma incapacidade igual ou superior a 60%.

Mas não vamos ficando melhor, porque sobre as pessoas idosas diz o seguinte:   " b) «Pessoa idosa», a que tenha idade igual ou superior a 65 anos e apresente evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais;"

A parte boa da alínea b é que para se ser considerado "idoso" não basta ter só uma idade igual ou superior a 65 anos e ainda bem, porque há muitas pessoas desta idade e mais velhas que estão melhor do que muitos mais novos. De acordo com este decreto, para se ser uma "pessoa idosa", tem de haver uma espécie de acumulação de funções que para além da idade, têm também de ser evidentes para a criatura que está a atender. Ou seja têm também de se verificar a limitação física, ou tem de se verificar uma limitação mental.  De acordo com esta alínea, não é preciso pedir um atestado às criaturas, mas em caso de dúvida como é que se comprova a idade da pessoa? Só através do BI/CC. Além disso, deixar a avaliação - sobre a acumulação de funções - ao critério da criatura que está na caixa também não é propriamente uma ideia muito brilhante.

Finalmente, chegamos às pessoas acompanhadas de crianças de colo que diz o texto que são: c) «Pessoa acompanhada de criança de colo», aquela que se faça acompanhar de criança até aos dois anos de idade.

Portanto... como é que se sabe que a criança tem até 2 anos de idade? Só pedindo o BI/CC também.

Conclusão, para operacionalizar o decreto como deve de ser (comprovando todos os requisitos inerentes à definição de todos os grupos-alvo, excepto o das grávidas que foram obliteradas na segunda parte do texto), para além do prioritário deixar de o ser ainda criaria transtornos muito maiores a quem não pertence ao grupo dos visados.
 

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