Dia 9 - Então e eles?

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Même do dia: É esse que têm aí em cima e para olharem bem, quando estiverem a açambarcar papel higiénico, ou outras coisas sem as quais acham que não conseguem viver.

Canção do dia: People = Shit, dos Slipknot... pode ser uma boa explicação também para a cena do papel higiénico.

Ora bem, numa altura em que estamos todos tão concentrados e empenhados em voar à volta do nosso umbigo como se do sol se tratasse, capazes de fazer inveja ao Ícaro e confirmando a teoria de Darwin sobre a lei do mais forte, surgiu-me uma pergunta: Então e eles?

Eles, os sem-abrigo. Eles, a malta que vive na rua - velhos e novos - cujas circunstâncias da vida os conduziram a um ciclo vicioso, do qual não conseguirão sair sem a ajuda daqueles que se importam. Sem a ajuda daqueles que, ainda que devidamente acautelados, se arriscam para ajudar quem não tem nada.

Na passada sexta-feira, à porta do Continente onde às vezes costumo ir, estava um rapaz que vive na rua. Eu ia com o meu marido e numa primeira abordagem, pensei em ignorá-lo. Isto é, vamos fazer de conta que a criatura é invisível, descaracterizá-la. Transformamo-la numa coisa, num objecto descartável e fica tudo bem, porque a coisa deixa de existir. Todos nós fazemos isto num ou noutro momento, mas naquele momento específico eu escolhi não o fazer porque tive a mais distinta noção que a realidade daquele rapaz e aquilo que ele terá de enfrentar nos próximos tempos, é muito pior do que eu tenho de enfrentar. Eu tenho uma rede que, bem ou mal, vai funcionando. Ele não tem rede nenhuma e então resolvi perguntar-lhe se ele precisava que nós lhe trouxéssemos alguma coisa do supermercado.

Ele explicou-me que estava com fome, pelo que se pudesse trazer-lhe qualquer coisa para comer e um pacotinho de ice tea ele agradecia. Assim foi. Claro que não lhe trouxe só um pacotinho de ice tea, trouxe-lhe alguns e mais duas caixas de salgados, porque não me parece que ele tivesse "um microondas em casa para aquecer comida". Não foi muito, é verdade, mas pelo menos naquela noite e no dia a seguir ele teria qualquer coisa para comer.

Quando saí do supermercado entreguei-lhe as coisas, perguntei-lhe se tinha um sitio para ficar e ele respondeu-me que sim (confesso que não sei o que teria feito se ele tivesse respondido que não, todavia presumo que haveria de me ocorrer alguma coisa), mas que estava um pouco preocupado porque iam começar umas obras e não sabia por quanto tempo ia conseguir ficar naquele sitio que tinha encontrado. Depois perguntei-lhe se estava bem de saúde, se estava a ter cuidado, dizendo-lhe para ele ter em atenção as doenças que andavam por aí etc. Ele então respondeu-me que estava bem, não tinha tido constipações e perguntou-me porque é que eu queria saber. Respondi-lhe: Porque sim e porque me importo.

Não lhe perguntei o nome e isso depois ficou a martelar-me no cérebro (e ainda martela um bocado), mas ainda não voltei ao supermercado e por isso também não sei se o rapaz lá continua. Contudo já andei a pesquisar os planos que as instituições têm para auxiliar esta franja da sociedade e confesso que, ainda que estejam a ser tomadas medidas que visam proteger esta parte da população, não sei nem se são suficientes, nem se estão a ser tomadas com a rapidez necessária.

O que eu sei é que cada vez que vejo situações de açambarcamento desnecessário, pessoas com comportamentos anormais, situações de aproveitamento para exigir mais isto ou aquilo, etc, lembro-me sempre daquele rapaz com quem falei na sexta-feira. Tudo isto porque por muito mais cómodo que seja olhar em exclusivo para o meu umbigo (que é muito bonito e é só meu), eu até gostava de acreditar que estamos um bocadinho mais à frente das teorias do Darwinismo Social, mas do que tenho observado recentemente, não me parece que assim seja.       

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